segunda-feira, 14 de maio de 2012

DEMOCRACIA E CIDADANIA

1. Apresentação do tema

Quando, em 4 de julho de 1776, foi promulgada a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, a nova nação que surgia pretendia romper com os símbolos e as práticas políticas do Velho Mundo, inaugurando uma nova e pluralista forma de praticar a política e de organizar a sociedade em torno do Estado Nacional. Nascia, então, o Estado democrático.
O primeiro intelectual a perceber e a escrever sobre tal fenômeno foi o francês Alexis de Tocqueville, o qual, em seu livro A democracia na América, procurou exaltar a nova forma de organização política nascida no Novo Mundo e que levava ao pé da letra os princípios iluministas propagados no continente europeu naquele período.
Ainda que os EUA inspirassem sua declaração de independência e sua nova nação nos princípios iluministas europeus combinando formas democráticas participativas com representativas, as demais nações europeias que participavam do processo de revoluções burguesas não estavam dispostas a permitir uma participação tão ampla da população nos rumos que seus Estados Nacionais estavam por tomar, optando por modelos mais conservadores e restritivos, adotando o voto de caráter censitário como forma de impedir tal participação.
Como aponta o historiador Eric Hobsbawn, ao comentar a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão aprovada no processo revolucionário francês, em seu livro A era das revoluções: “Este documento é um manifesto contra a sociedade hierárquica de privilégios nobres, mas não um manifesto a favor de uma sociedade democrática e igualitária.”
A democracia moderna, portanto, não surge com o Estado liberal, ainda que os dois não sejam incompatíveis. Sua origem é resultado das contradições que vão surgindo no Estado liberal e das lutas promovidas inicialmente pelo movimento operário em prol de uma maior participação política, a saber, de maior democratização.
Mas o processo democrático não se encerra com o movimento operário no século XIX. As conquistas e a maior democratização da sociedade vão levar ao surgimento de novos movimentos sociais, cujas lutas e mobilização vão marcar todo o século XX em direção a uma sociedade mais aberta, tolerante, pluralista e democrática.
Com o surgimento desses movimentos sociais, a própria democracia vai encontrar novas formas e desafios para se aperfeiçoar, afirmando a cidadania, elemento central de nossa discussão neste módulo.

2. A luta pela democratização: o movimento operário

O movimento operário nasce na Europa a reboque das revoluções industriais das nações europeias ao longo dos séculos XVIII e XIX. Em um primeiro momento, a classe operária é plenamente envolvida pela dinâmica capitalista, tornando-se refém das situações de desequilíbrio econômico que produziram transformações sociais, ampliando a pauperização de populações urbanas.
A entrada de camponeses nos centros urbanos gerou um gigantesco exército industrial de reserva e dificultou, a princípio, qualquer forma de organização coletiva diante da existência de poucas vagas nas fábricas existentes. Assim, o êxodo rural e o processo de urbanização estavam intimamente vinculados à industrialização que se afirmava.
Apenas com a maior dinamização da economia capitalista no século XIX, que viera acompanhada pela maior organização coletiva do operariado, houve avanços no âmbito dos movimentos sociais, permitindo aos operários estruturarem-se coletivamente para, diante da classe patronal, conseguir direitos trabalhistas. Para tanto, os trabalhadores utilizaram-se de instrumentos como a greve (e sua variação, a greve branca, quando os operários comparecem ao trabalho na fábrica, mas mantêm um ritmo lento de produção), as passeatas, os piquetes e a publicação de panfletos e jornais.
As conquistas na esfera do trabalho tornaram-se realidade quando o operariado passou a se organizar coletivamente para enfrentar o patronato, o que ocorreu com o surgimento dos sindicatos, formas coletivas que derivavam das trade unions, primeiras associações de trabalhadores criadas na Inglaterra.
Os sindicatos foram mais combativos e diretamente ligados às necessidades do operariado na Europa, ao contrário do que viria a acontecer no Brasil, por exemplo, onde a história do movimento operário transcorreu de forma diversa, sem a autonomia e o confronto comuns ao caso europeu.
Porém, a capacidade reivindicatória dos sindicatos restringia-se ao mundo da fábrica, situação que se alteraria com a nova mudança da organização operária ocorrida ainda no século XIX, qual seja, a formação de partidos políticos operários.
O surgimento de partidos de base operária ampliou a luta por maior democratização. Os partidos políticos existem desde os primórdios da Antiguidade Clássica e sua organização conta com uma estrutura que deve servir como ponte de comunicação entre a sociedade e o Estado.
Portanto, os partidos nascem com o intuito de atender às reivindicações de uma sociedade complexa que se utiliza do expediente eleitoral para disputar o controle do Estado e de cargos dentro dele. O surgimento dos partidos operários apenas tornou as disputas políticas mais intensas, associando cada um dos partidos existentes a uma posição ideológica.
Por outro lado, esses partidos têm que se adaptar às regras do jogo democrático para conquistar o eleitor e, assim, obter os ganhos políticos concernantes ao controle do Estado Nacional e dos cargos políticos e administrativos.
Tais disputas guardam perigos ao modelo democrático, já que, com o crescimento e a diversificação da sociedade, os partidos tendem a se afastar de suas respectivas bases, produzindo discursos que se adaptam à maioria dos eleitores, sem representá-los de fato, além de sua estrutura partidária gerar elites que controlam uma sigla partidária buscando exercer o poder para atendimento de demandas privadas. Nesse momento, há risco totalitário ou autoritário, pois há impedimento da formação de novos líderes e do rodízio democrático, necessário para a consolidação de uma sociedade mais plural e democrática.

3. Os novos movimentos sociais

As limitações presentes nos movimentos sindicais e nos partidos políticos, que se institucionalizam e se burocratizam, são o estopim para o surgimento de novas demandas políticas não atendidas por esses meios convencionais, daí o surgimento dos novos movimentos sociais.
Estes, por sua vez, não são fruto exclusivo das limitações dos movimentos anteriormente citados, mas também da própria diversificação existente na sociedade, resultado da expansão capitalista e da maior distribuição da riqueza ao longo do século XIX e começo do século XX.  Com essa diversificação, observa-se a emancipação de grupos até então subordinados a uma ordem social ainda patriarcal e conservadora.
Dentro desse cenário, os novos movimentos sociais identificam- se com causas específicas, tais como a afirmação do negro e da mulher como membros e cidadãos efetivos da sociedade ou como o movimento hippie, que contestou os valores familiares e sociais em voga nos anos 1960 em países avançados e que abriu espaço para outras causas de gênero, como o movimento gay e o movimento ecológico.
Em um primeiro momento, esses movimentos eclodem em nações marcadas por maior organização política e social, onde a democracia se instalava de forma decisiva como resultado das pressões sociais até então promovidas pelo operariado.
Nesse contexto, destaca-se o fortalecimento do movimento negro e do movimento feminista nos EUA, um dos principais palcos pela luta por direitos civis entre a primeira e a segunda metade do século XX. No caso em particular do movimento negro, é preciso lembrar que os negros eram considerados cidadãos de segunda categoria, sendo segregados política e socialmente em muitos estados norte-americanos.
A segregação foi combatida de formas distintas, tanto pela atuação de Martin Luther King, que procurou uma abordagem pacífica, quanto de Malcom X, que procurou meios de combate mais incisivos e conflitantes com a criação dos Panteras Negras, grupo que se utilizava da violência para reivindicar e, ao mesmo tempo, defender-se das agressões e restrições impostas pela elite branca.
No caso do feminismo, as reivindicações vêm desde o século XIX, mas o avanço do movimento apenas se faz presente quando as mulheres começam a abandonar seus lares para participar mais incisivamente do mundo do trabalho durante a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais.
Ainda assim, o direito ao voto seria uma conquista tardia, quando levamos em consideração a história de conquistas democráticas das nações avançadas, apontando para certo traço patriarcal presente nelas.
Nos anos 1960, o movimento estudantil e o movimento hippie acabaram por levantar bandeiras que também seriam incorporadas pelo movimento feminista. O avanço nas pesquisas biológicas permitiu o surgimento de métodos contraceptivos eficientes, liberando a mulher da obrigatoriedade de se tornar mãe e levando a juventude a romper com os padrões de comportamento que caracterizavam a sociedade até então.
A crítica ao conservadorismo e aos valores instituídos, assim como a expansão da renda para outros setores e segmentos da sociedade, são fatores que vão incentivar o surgimento do movimento gay, posteriormente incorporando outras opções sexuais até chegar à sua atual forma, o movimento LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e travestis).
Este, a despeito de suas conquistas, continua a sofrer com o preconceito social, ainda que tenha se tornado um importante nicho de consumo para o mercado.
Por fim, vale uma última ressalva para destacar a preocupação ecológica com o desenvolvimento sustentável, prática recente que se associa com as alterações climáticas decorrentes do acelerado e desenfreado crescimento industrial, que ameaça o ecossitema do qual a humanidade faz parte.
A despeito das conquistas obtidas pelos novos movimentos sociais, devemos salientar que as estruturas sociais não foram modificadas, mas esses movimentos contribuíram para a ampliação da esfera democrática.

4. A democracia moderna — Cidadania e participação política

O avanço dos movimentos sociais contribuiu para uma maior democratização das sociedades ocidentais principalmente. No entanto, é preciso entender que a democracia que nasce neste período distancia-se teoricamente do modelo democrático original, surgido na Grécia Antiga, vindo mesmo a ser contestada por muitos pensadores contemporâneos, que não a classificam como democracia, mas como outro tipo de governo, a poliarquia.
Tradicionalmente, os cientistas políticos tendem a caracterizar de forma distinta esses dois modelos: a democracia dos antigos (referência ao modelo grego da Antiguidade) e a democracia dos modernos (inaugurada na prática com a formação da nação norte-americana ao final do século XVIII). Apesar de esses dois modelos pregarem a participação política dos cidadãos na tomada de decisões do Estado, guardam diferenças entre si.
A democracia dos antigos caracteriza-se pela atuação direta dos cidadãos nas decisões que envolvem o espaço público. Como todos buscam o bem comum, há, entre os cidadãos, um princípio de igualdade que se manifesta na aplicação das decisões coletivas, sempre decidida através de um sorteio entre os cidadãos para preservar a igualdade entre eles. Mas, para que essa realidade possa transcorrer, é preciso restringir o número de cidadãos, o que a torna uma democracia excludente.
Por sua vez, a democracia dos modernos subsiste em uma sociedade de massas, cujo número de cidadãos inviabiliza a participação direta e exige meios indiretos para tanto; a principal forma é a representação, em que escolhemos aqueles que vão defender os valores e reivindicações nos quais acreditamos. Aqui, com clara influência dos ideais iluministas, defende-se a liberdade como valor essencial, e não a igualdade entre os cidadãos.
A representação política não exclui a participação política direta. Inúmeras democracias modernas adotam um modelo misto em que procuram combinar os meios tradicionais de representação com a adoção de meios participativos, sendo o plebiscito o mais conhecido deles. Ainda assim, a plena participação de todos os cidadãos não é uma realidade dentro deste modelo.

5. Democracias maduras e recentes

Outro aspecto importante a ser assinalado é o fato de que os modelos democráticos são distintos quanto à sua eficiência. Nota-se uma clara distinção entre as primeiras democracias modernas e as mais recentes, com as primeiras sendo chamadas de democracias maduras.
Neste último caso, observamos a existência de um regime estruturado que cria meios de comunicação entre o Estado e a sociedade civil, permitindo a esta participar ativamente das decisões do primeiro. Essa realidade, alicerçada em uma sociedade de princípios liberais, gera uma contradição política conhecida por apatia política, em que os cidadãos deixam de participar das decisões políticas para se dedicar a suas vidas pessoais.
Esse fato abre espaço para que grupos políticos organizados venham a tomar o controle do Estado, podendo alterar as regras democráticas ou, sem a devida fiscalização e o acompanhamento da sociedade civil, utilizar-se dos recursos públicos para satisfazer seus interesses particulares, o que fere os princípios democráticos na mesma proporção.
A apatia política também pode ser gerada quando o cidadão se depara com temas de difícil compreensão técnica, resultantes da complexidade da organização do Estado e da solução dos problemas sociais advindos dele.
Assim, discussões quanto à Selic (taxa de juros), a práticas protecionistas, à política industrial ou à prevenção à violência urbana exigem a presença de especialistas que tornam a opinião do cidadão comum pouco significativa, levando este a abandonar os debates sobre tais temas, que passam a ser decididos pelos especialistas, o que gera perigo para a normalidade democrática.
Um último elemento que ameaça as democracias maduras é a lentidão do processo democrático, que exige discussões e deliberações dos projetos em pauta para, apenas depois de esgotados todos os ângulos, implantá-los, o que, pela demora, pode gerar atrasos e problemas.
Por sua vez, as democracias recentes são marcadas pela inexistência (ou precariedade) de meios de comunicação entre o Estado e a sociedade civil e pela incapacidade do primeiro em manter o modelo democrático por um longo período, sendo sempre interrompido por golpes e implantação de regimes autoritários. A descontinuidade democrática dificulta, por sua vez, a implantação e a consolidação dos valores democráticos, necessários à conscientização e participação popular.
A existência de mecanismos democráticos débeis nesses regimes gera também a apatia política, mas com elevado grau de cidadãos passivos. Mesmo que – como é o caso do Brasil – se tenha a obrigatoriedade da votação, devemos nos lembrar de que esta é apenas parte do processo democrático. A impossibilidade de o modelo democrático se perpetuar por mais tempo impede que seus cidadãos possam se educar na democracia, gerando, no médio prazo, o risco de retorno à realidade autoritária.

6. Cidadania no Brasil recente: restrições

A redemocratização dos anos 1980 introduziu uma nova realidade na sociedade brasileira, que se deparou com um desafio: a participação política. Os avanços propostos pela Constituição de 1988 são promissores neste caso, mas é preciso tomar cuidado com suas pretensões. Passados mais de vinte anos de sua implantação, o cenário de luta pela democratização ainda se encontra distante do razoável.
Os estudiosos identificam a enorme concentração de renda existente no Brasil como um dos fatores responsáveis pela lentidão no exercício da cidadania. A diferença entre ricos e pobres é brutal, levando a percepções distintas do significado da cidadania.
A tentativa de superação dessa situação política desconfortável é clara. O Estado necessita introduzir mecanismos econômicos e sociais que efetivamente promovam uma redistribuição de renda, reduzindo as desigualdades e garantindo condições adequadas de sobrevivência. Apenas a partir da realização econômica é que o cidadão pode se dedicar a aprofundar sua participação na sociedade.
É possível alcançar esses dois fins através do incentivo à educação e do fortalecimento da sociedade civil, através de seus próprios representantes e também do Estado democrático, que deve incentivar maior independência e autonomia de grupos e entidades civis, além de fortalecer a aplicar corretamente as regras jurídicas.
Dentro da realidade política brasileira, o distanciamento entre a classe política e os interesses do eleitorado, a permanência de práticas políticas oligárquicas com a transformação de interesses privados em interesses públicos e a incapacidade do cidadão em se reconhecer como parte do Estado e da sociedade, dada a ineficiência dos mecanismos de representação, são os principais desafios a serem superados para a efetiva implantação da cidadania.